segunda-feira, 9 de julho de 2012

O Barro Desobediente


 Houve um oleiro que chegou ao pátio de serviço e reparou com alegria em pequeno bloco de barro. Contemplou-o, enlevado, em face da cor viva com que se apresentava e falou:

- Vamos! Farei de ti delicado pote de laboratório. O analista alegrar-se-á com teu concurso valioso.

Imensamente surpreendido, porém, notou que o barro retrucava:

- Oh! não, não quero! Eu, num laboratório, tolerando precipitações químicas? Por favor, não me toques para semelhante fim!

O oleiro, espantado, considerou:

- Desejo dar-te forma por amor, não por ódio. Sofrerás o calor de forno para que te faças belo e útil... Entretanto, porque te recusas ao que proponho, transformar-te-ei numa caprichosa ânfora destinada a depósito de perfumes.

- Oh! Nunca! Nunca!... - exclamou o barro - isto não! Estaria exposto ao prazer dos inconscientes. Não estou inclinado a suportar essências, através de peregrinações pelos móveis de luxo.

O dono do serviço meditou muito na desobediência da lama orgulhosa, mas, entendendo que tudo devia fazer por não trair a confiança do Céu, ponderou:

- Bem, converter-te-ei, então, num prato honrado e robusto. Comparecerás à mesa de meu lar. Ficarás conosco e será companheiro de meus filhinhos. - Jamais! - bradou o barro, na indisciplina - isto seria pesada humilhação... Trans­portar arroz cozido e aguentar caldos gordurosos na face? Assistir, inerme, às cenas de glutonaria em tua casa? Não, não me submetas!...

O trabalhador dedicado perdoou-lhe a ofensa e acrescentou:

- Modificaremos o programa ainda uma vez. Será um vaso amigo, em que a límpida água repouse. Ajudarás aos sedentos que se aproximarem de ti. Muita gente abençoar-te-á a co­operação. Despertarás o contentamento e a gratidão nas criaturas!... - Não, não! - protestou a argila - não quero! Seria condenar-me a tempo indefinido nas cantoneiras poeirentas ou nas salas escuras de pessoas desclassificadas. Por favor, poupa-me! Poupa-me!...

O oleiro cuidadoso considerou, preocupado:

- Que será de ti quando te conduzirem ao forno? Não passarás de matéria endurecida e informe, sem qualquer utilidade ou beleza. Sem sacrifício e sem disciplina, ninguém se eleva aos planos da vida superior.

O barro, todavia, recusou a advertência, bra­dando:

- Não aceito sacrifício, nem disciplina...

Antes que pudesse prosseguir, passou o enfornador  arrebanhando a argila pronta, e o barro desobediente foi também conduzido ao forno em brasa.

Decorrido algum tempo, a lama vaidosa foi retirada e - ó surpresa! - não era pote de laboratório, nem ânfora de perfume, nem prato de refeição, nem vaso para água e, sim, feio pedaço de terra requeimada e morta, sem qual­quer significação, sendo imediatamente atirada ao pântano.

Assim acontece a muitas criaturas no mundo. Revoltam-se,  contra a vontade soberana do Senhor que as convida ao trabalho de aperfei­çoamento, mas, depois de levadas pela experiên­cia ao forno da morte, se transformam em ver­dadeiros fantasmas de desilusão e sofrimento, necessitando de longo tempo para retornarem às bênçãos da vida mais nobre.

XAVIER, Francisco Cândido. Alvorada Cristã. Pelo Espírito Neio Lúcio. FEB. Capítulo 29.